O seu pensamento foi esmagado por uma avalanche sonora. O semáforo estava verde e, atrás de si, um condutor num Renault 5, um daqueles Super, esbracejava vigorosamente.
Lentamente e sem pressas iniciou a marcha em direcção ao centro da cidade. Uns metros mais à frente não resistiu a lançar um olhar para o jardim plantado à sua esquerda, onde, a cómoda frescura da vegetação convidada a uma pausa. Nesse instante reparou num condutor que abria a porta do carro. Boa, pensou, tenho um estacionamento. Sem demoras efectuou inversão de marcha, mesmo a tempo de ocupar o lugar deixado vago pelo outro condutor.
Procurou umas moedas no bolso e dirigiu-se à máquina para efectuar o pagamento do estacionamento. Colocou o recibo no interior do carro e dirigiu-se à esplanada colocada no lado norte do jardim. Procurou uma mesa na extremidade Este, o mais próximo possível do rebordo do precipício. Na verdade não era nenhum precipício, mas sim o muro alto que separava o jardim público da estrada que serpenteava a seus pés. No entanto gostava de pensar que era um verdadeiro precipício, um abismo que engolia as colinas que lhe toldavam a visão.
Estava submerso nestes pensamentos quando uma voz o interpela.
- Deseja beber algo?
Era o empregado da esplanada. Na verdade queria, algo bem fresco, de cor dourada, algo que lhe recordasse as longas planícies que, naquela cidade, apenas a sua imaginação conseguia vislumbrar.
- Traga-me um fino, por favor. – Acabou por dizer – Bem fresco! – Acrescentou por fim.
- Com certeza. – Respondeu prontamente o empregado, que agora se afastava.
Adorava aquele local. Havia mesmo poucos lugares naquela cidade que lhe alegrassem tanto o espírito. Era um dos poucos locais onde sentia a liberdade de poder olhar mais além. Dali conseguia ver todo o vale glaciar que se estendia sob o seu olhar. Não era como olhar uma planície, não, nada disso! Ao fundo uns montes escuros teimavam em cortar-lhe a visão e lembravam-lhe insistentemente que aquela não era a sua terra, o seu lar.
Bebeu um longo sorvo de cerveja, sentindo a frescura da brisa que, por vezes, faz dançar as searas onde se produzem os cereais quem eram a fonte da sua satisfação actual. Era como se parte dessa brisa permanecesse aprisionada no interior dos grãos e era agora libertada para seu deleite.
Voltou o pensamento para o espaço que se estendia à sua frente e notou que havia demasiado verde e uma escassez de dourado. Deixou o seu olhar rasgar o céu vertiginosamente, à velocidade da imaginação, indo por fim embater violentamente contra os cumes das elevações que, no horizonte lhe barragem a passagem. Apesar de tudo, aquela berma do precipício era dos poucos locais onde ainda conseguia sentir o doce aroma de liberdade, onde podia dar largas aos seus olhos, onde a sensação de claustrofobia se diluía num espaço de limites ambíguos.
Repentinamente deu por si a chamar o seu olhar que navegava no mar verde e dourado do vale, pois a seu lado, numa outra mesa, alguém se sentara. Era jovem, cabelos castanhos, com uma leve ondulação que rebentava docemente sobre os ombros. Muito elegante, tinha um rosto doce, com formas tão suaves que quase pareciam esculpidas por um mestre renascentista. Toda aquela delicadeza lembrava-lhe uma boneca de porcelana, mas que incrivelmente, não conseguia recordar de onde.
Nesse momento ela mexeu a sua cadeira, a seu lado surgiu um criança que ela ajudava a sentar. Puxou-lhe a cadeira para a frente, ajudando-a a subir. Era muito bela, talvez mesmo demasiado bela, excessivamente bela para pertencer àquele quadro sem luz e demasiado acanhado.
Procurou-lhe em vão o olhar, mas ela apenas prestava atenção à criança a seu lado. Mantinha-se atento, discretamente como era aconselhável, aos seus movimentos, quando um movimento no interior do seu bolso reclamou a sua atenção. Colocou a mão no interior do bolso, de onde retirou o telemóvel. Logo agora, pensou, quem lhe ligaria. Olhou o visor e reconheceu o nome, tinha de atender.
- Sim…
Do outro lado uma voz masculina perguntava,
- Onde estás? Então esqueceste-te que temos uma tarefa para fazer para Segunda? Se queres ir de fim-de-semana, butes lá a fazer a tarefa! Estamos à tua espera.
Raios (para não dizer algo pior) esquecera a tarefa. Sabia que eram importantes, e o elemento responsável por uma parte substancial do seu sucesso, mas logo agora, agora não, não queria, não podia, não… não podia deixar os colegas pendurados…
Chamou o empregado enquanto bebia o resto da cerveja, agora já sem sabor mágico que o encantara antes. Pagou a bebida e levantou-se. Foi então que aconteceu algo mágico. Ela olhou para ele e, por instantes, os seus olhos cruzaram-se. Tinha uns olhos cor de mel, dourado como as suas planícies. Por momentos esqueceu onde estava e ali, de pé, especado, sentiu-se viajar para outro lugar conduzido pela luz aquele olhar mágico. Corria, corria feliz, sorridente por entre campos vastos, quase ilimitados, dourados por dois sóis que douravam tudo o que tocava os seus raios.
Num instante os dois sois esconderam-se e o seu campo dourado ficou verde novamente. Resignado afastou-se em direcção ao carro. Várias vezes hesitou, talvez fosse melhor voltar, talvez os dois sóis cor de mel… Cada passo em frente era seguido por dois passos atrás pela sua mente, quando mais próximo estava do carro mais longe se sentia.
Não entedia. Algo se passava com ele nesse dia.
Que seria?
Era cansaço, só podia ser isso, que mais poderia ser?